O tempo faz a diferença

Monomotor com linha de produção mais longeva ainda mantém a glória

No dia 22 de dezembro de 2020 o Beechcraft Bonanza completou 75 anos de produção ininterrupta. É o avião com mais longevo histórico de fabricação no planeta. Nasceu dentro da projeção de Walter Beech, fundador da Beechcraft, que se ele quisesse manter a prosperidade que o seu negócio vinha mantendo na época da segunda guerra mundial, com cerca de 7 mil aviões construídos para atender o mercado militar, ele deveria oferecer ao mercado civil um produto que aproveitasse a avalanche de prosperidade  – nos Estados Unidos, bem dizendo – no período pós-conflito. Foi a equipe liderada pelo engenheiro Ralph Harmon que apresentou o modelo 35, um avião de quatro lugares, monomotor, monoplano, todo feito em metal (os ailerons e flapes eram forrados em tecido nas primeiras 40 unidades fabricadas) e que estabelecia novos padrões para o segmento. Com um motor Continental E-165 de 165hp era rápido, chegando a uma velocidade de 150nós. O projeto caprichava na aerodinâmica para alcançar performance. A cauda em V, rebites de cabeça chata e detalhes como o conjunto de trem de pouso retrátil totalmente cobertos quando recolhidos mostravam um produto bem diferenciado em relação ao que existia no mercado. Para voar na mesma velocidade, geralmente só era possível com modelos de motor maior, algumas vezes equipados com um grande radial. E ele custava pouco menos de US$ 8 mil  para ser adquirido na época. No começo, até por conta de sua performance superlativa, aconteceram alguns acidentes. Em geral a culpa estava na falta de treinamento. Mas também poderiam somar a característica de comando da cauda em V e do resto da aeronave em si. O modelo tinha resposta que, se não era mais arisca, demandava uma maior finesse de pé e mão do piloto e bem lembrado, o que existia na mesma categoria na época, e era o que  as pessoas estavam mais acostumadas, entregava performance mais comedida. O avião de cauda em V era menos estável no seu eixo longitudinal se comparado com um modelo de cauda convencional.

Bem verdade, o Bonanza tem atuação conjugada de leme e aileron sendo que os pedais devem ser mais usados na decolagem e  pouso, para compensar o torque do motor e o fator P da hélice. No resto, o melhor é usar os pés com parcimônia. A Beech inclusive modificou a fixação da cauda depois que foram acusados alguns casos de quebra naquela parte da fuselagem ocasionados pela somatória de falha de gerenciamento no carregamento da aeronave (com muito peso concentrado na traseira) e uso inapropriado como entradas em atmosfera ruim com velocidade excessiva e demasiados comandos abruptos. Ou seja, tinha gente que em uma situação de mau tempo, acabava operando o avião em parâmetros bem fora do envelope original do projeto. E naquela época, não eram todos os Bonanza que estavam configurados para voos por instrumentos o que, junto com a também falta de doutrina e formação do piloto, facilitava a ocorrência de perda de controle da aeronave em condições de meteorologia adversa. A icônica cauda em V começou a ser substituída quando a Beechcraft lançou o E33A Debonair em 1959, que nada mais era que o modelo V35 com uma cauda baixa convencional. O avião com a nova configuração era cerca de 20,5kg mais leve, mas a Beech para tentar vender o cauda em V, dizia que o V35 era mais veloz, capaz de atingir 177nós, o que na prática foi desmentido, ambos acabavam voando a mesma velocidade de 173nós. O derradeiro Bonanza com cauda em V saiu da fábrica em 1982. Contudo, o Bonanza se mostrou uma máquina que faria história. Confortável de certa forma, apesar dos dois ocupantes dos assentos dianteiros terem um espaço mais estreito na altura dos ombros, e bem mais barato de operar que o irmão Staggerwing, não havia como dar errado. Para comprovar que o projeto era mais que válido, basta conferir que depois de 75 anos, a estrutura apesar de ter crescido e ganhado motorização maior (chegando aos atuais 300hp da versão em fabricação) continua basicamente a mesma. As asas tem o mesmo desenho, aliando performance e bom comportamento em baixas velocidades. E dele surgiram versões de dois motores, o Baron, e o de treinamento militar Mentor com fuselagem mais estreita e cabine com dois lugares em tandem.

O Bonanza serviu de plataforma para versões turboélice. A Soloy instalou uma Rolls-Royce 250-B16F/2 de 450shp enquanto que a Rocket Engineering optou pela instalação de uma Pratt & Whitney PT6A-21 de 500shp. Essas duas conversões levaram ao monomotor a ter um consumo similar ao do bimotor Baron, mas o ganho de performance é considerável atingindo velocidades de cruzeiro da ordem de 195 a 250nós em níveis altos de voo como 20.000 a 23.000pés (evidentemente usando máscaras de oxigênio, pois os modelos usados para as conversões não são pressurizadas) e se for para comparar em altitudes mais baixas, a 12.000pés por exemplo, onde ainda não é preciso usar máscaras de oxigênio, esses turboélices voarão em média a 170nós consumindo algo em torno de 24 a 26 galões de querosene por hora. O pênalti desses modelos está na perda de carga paga, pois precisam de mais combustível nos tanques, tanto que a Soloy adapta tanques de pontas de asas no seu projeto. Depois de sete décadas e meia, o Bonanza ainda vive, a Cessna interrompeu em 1986 a fabricação de seu maior concorrente, o C210 Centurion e nem pense em oferecer um Cirrus SR22T ao legítimo bonanzeiro, que vai rejeitá-lo dizendo que é avião de plástico. A Beechcraft até que tentou, fez estudos para lançar um substituto na década de 1970. O projeto para um avião de seis lugares lembrava o Piper Malibu, mas não foi em frente. Está certo que para muitos, os exemplares mais recentes, principalmente os oferecidos na gestão da Textron e Raytheon em cima da marca Beechcraft perderam um pouco o nível de acabamento oferecido na década de 1980 e que sempre serviu para que a Beechcraft fosse referência nesse quesito. Contudo, a fascinação pelo Bonanza traspassa esses detalhes. A qualidade de voo foi mantida, isso é que importa agora e muito provavelmente aos outros próximos 75 anos.



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